A vida é um dilema, nem sempre vale à pena. (chico Buarque)































quinta-feira, 22 de outubro de 2009

IRYNA


I R Y N A

Carmen Silveira


Suas lágrimas nunca vinham na hora certa. Seus olhos pingavam lágrimas abusadas. Sabia estar vermelha.
- E quanto aos estudos Iryna, qual a área escolhida? – perguntou-lhe o entrevistador
- Estou fazendo o curso de História, gosto de pesquisa.
A resposta soou sem sentido, sentiu no rosto o logro de sua primeira entrevista de emprego. Pensou na frustração de seu pai.
Havia nela alguma coisa inconveniente. Era muito branca, muito alta, muito quieta, não sabia o que fazer, como agir. Era estrangeira, tinha hábitos diferentes desse povo barulhento e cheio de gestos, que falava alto e sobre qualquer coisa. Era filha única, seus pais a tiveram já com certa idade. Foi criada com muita escassez, de palavras, carinhos, liberdades. Inicialmente não tinham condições financeiras, e quando a tiveram não conheceram a fartura.
Pensou na mãe Maria, nascida de imigrantes ucranianos. Sua família só parou de crescer quando o pai faleceu e ela tinha dezoito anos. Restou-lhe a mãe e sete irmãos, todos necessitados de tudo.
Quando Maria conheceu, Dmytri gostaram um do outro, mas só casaram dez anos depois. Maria tinha muito a fazer antes de pensar em casamento, e talvez fosse o motivo da sua melancolia. Aos poucos, Dmytri agia como se ela nunca tivesse casado com ele. Mamãe Maria, como se ele não existisse.
Vovó Anna era uma mulher altiva e durante toda a vida falava de Yekaterinoslav, a cidade grande onde nasceu que ficava às margens do rio Dniepro, na Ucrânia. Com a guerra a cidade mudou de nome, passou a chamar Dniepropetrovsk, vovó jamais aceitou, morreu sem pronunciar o novo nome.
Era adorável a “babuska”, dela herdou a pele branca, transparente, os cabelos fartos e loiros, os olhos azul cobalto. Não gostava de lembrar o sofrimento nos olhos baixos dessa sua gente. A dor era uma herança a ser carregada e repassada aos filhos e netos, como uma jóia de família.
Perdida nesses pensamentos, quase esquecida da entrevista, chegou em casa e encontrou os olhos da mãe, emudecida entrou no quarto certa de que não seria chamada no emprego, acostumada com as derrotas.

Ligaram do laboratório. Tinha sido escolhida, estava feliz, ainda não sabia que lá encontraria seu futuro marido, o próprio entrevistador, na verdade o diretor. Começaram a namorar, tudo era novidade: dinheiro, viagens, presentes. Mais do que tudo estava extasiada consigo mesma. A única coisa de que não se deu conta é que não estava apaixonada. Casou rápido com aquele homem maduro e importante, rico o suficiente para comprar tudo: tempo de espera, enxoval, roupas.
Casada, parou de trabalhar, ficou em casa administrando faxinas. Com isso o mau humor se instalou sob forma do silêncio, tal como sua mãe. E com o silêncio dela veio o dele, e em poucos meses não se falavam mais. Os assuntos ficaram diferentes. Transavam pouco, achava-o pesado e com cheiros pouco atrativos. Combinaram de dormir em quartos separados.
Aos poucos soube de fatos sobre a loucura da família dele. Estórias de suicídio, parentes internados, coisas não contadas. Estava descobrindo a loucura de seu marido. A sua, ainda não.
Não lembra bem quando começaram os maus tratos. Ele alternava períodos paranóicos de controle sobre ela, quando vistoriava suas contas, sua bolsa, suas compras, e períodos de apatia quando não se falavam durante dias, e algumas vezes ele não vinha dormir em casa.
Terminou a faculdade mesmo contra a vontade dele formou-se em História. Com o diploma e a decisão de trabalhar fora, as coisas degringolaram. Bateu-lhe no rosto, derrubou-a e em seguida arrastou-a pelos cabelos até seu quarto e a trancou nele. Voltou algumas horas depois completamente transtornado. Pediu-lhe perdão de joelhos, tratou os ferimentos, jurou por tudo jamais repetir a injúria.
Logrou alguns dias de completa dedicação dele, transaram várias vezes e ela sentiu sossegar seu casamento. Sobre a agressão nada mais se falou. Conseguiu vaga como professora em escola conceituada, e foi contratada antes mesmo de conhecer a diretora, prova do poder da família do marido.
Em alguns meses foi convidada para o lugar de orientadora da matéria, não aceitou alegando falta de tempo, mas na verdade sentiu novamente a manipulação de seu marido.
Decidiu estudar inglês num curso noturno e foi o bastante para ser esmurrada sem prévio aviso nem discussão. Ele bateu e saiu; ela foi ao banheiro inventariar o estrago no rosto.
O casamento acabou, estava resolvido. Sem divórcio, sem pensão, sem despedidas. Voltou para a casa da mãe num dia chuvoso e cinza, encontrou seu antigo quarto atulhado de roupas por passar, bugigangas e jornais velhos.
Nos dias seguintes, a mãe a olhava de longe, acusava-a de alguma coisa, Iryna, gênio impossível, parecido com o do pai. Nada estava como antes, nem mesmo ela. Pensou em procurar um lugar para morar, onde pudesse ficar só e juntar seus pedaços.

Um dia amanheceu diferente. Estava morando num quarto com banheiro e havia organizado uma mini-cozinha. Nas vitrines viu coisas bonitas que gostaria de comprar, achou que poderia ter casa própria e foi atrás. Em 4 meses assinou a escritura e sua vida encheu-se de afazeres no apartamento quarto e sala, o mais lindo que ela conhecia, paredes claras e muito sol. Ganhou panos de prato da mãe, toalhas de mesa das colegas e comprou jogo de lençóis. Estava com 27 anos, encantada com a vida, passou a freqüentar bares e festas.
Conheceu Francisco, ela à mesa bebericando, ele tocando no palco, olhos fixos nela. No início achou encantadora a sua insistência, retornou várias vezes e em todas elas recebeu o olhar, depois a visita do músico à mesa, o drinque e a dança. Então ela deixou-se ficar no salão depois que os amigos despediram-se. Ele acompanhou-a até em casa, mãos dadas, mãos quentes as dele! E beijaram-se. Nessa noite nada mais aconteceu.
Em pouco tempo ele estava nos lençóis novos da sua casa nova, e por lá permaneceu. Ele tocava seu corpo e seus dedos musicais tiravam solos improváveis que ribombavam no paraíso. Quando saíam à rua, evitavam as pessoas, como os grandes apaixonados que se tornam transparentes, freqüentaram parques, orla do rio, bares underground, lanches inusitados.
Ele surgiu no final da tarde com suas coisas, alguns livros, discos e revistas, com a pouca roupa de pobre e a meiguice nos gestos. Estava feliz e feliz remexeu na caixa de papelão que ele havia deixado num canto, com algumas fotos.
- Minha mãe, esse meu padrasto com meus irmãos. Essa aqui é minha irmã mais velha e o bebê é seu filho. Francisco não aparentava, mas era filho de negros.
Um dia uma vizinha da sua mãe os viu, logo o pai telefonou para saber do negro. Ficou a certeza que nunca convidaria Francisco para visitar sua família.
A vida continuou e uma sensação engraçada passou a incomodá-la e num repente deu-se conta que estava dormindo sozinha, Francisco continuava tocando nas madrugadas, e dormia enquanto ela lecionava na escola. Viam-se pouco, a tesão diminuiu. Ela passou cobrar horário e ele ouvia calado, bebia um copo de leite e deitava para logo ressonar. Um dia, antes de deitar, a empurrou. No outro dia a agrediu.
Pronto, lá estava ela novamente apanhando de seu homem. Houve uma noite em que ele passou dos limites e ela ficou seriamente machucada. Francisco pegou suas coisas e foi-se.
Outra vez estava de licença no trabalho para curar feridas, dedicou-se a ajeitar a casa e, no álbum de fotos, viu a pequena cidade de Colinas, suas primas, sua origem ucraniana, os montes, as chaminés, o sorriso simples das mulheres. Num impulso preparou a mala, ligou para a prima Tânia e combinaram, foi para a rodoviária, sentou num banco aguardando a hora de embarque e permitiu-se dormir durante a viagem noturna.
Desembarcou num lugar que parecia outro país, uma vila com casas simples e bem cuidadas, crianças com cabelos muito claros brincando em plena rua, e muitas flores nos jardins. Lembrava coisas de sua avó, evidencias da colonização ucraniana. Tânia estava esperando, abraçou-a, nada falou. Tinha um olhar velado como sua mãe, e quando quis lhe falar alguma coisa ela calou-a dizendo: mais tarde, deixe isso para depois.
Durante os primeiros dias ela recorda ter sido mimada pelas mulheres que chegavam com comidas, apresentavam-se como sendo filha de fulano, neta de sicrano, falavam nomes conhecidos, muitas vezes citados por sua “baba”.
Aos poucos se sentiu forte e segura. E então começou a falar, falou muito, falou tudo, o que ela não contou era o quanto sentia falta de Francisco, apesar de tudo era louca por ele e sonhava em transar desesperadamente uma derradeira vez.
Dormiu tranqüila, tinha partilhado suas mágoas com suas parentas que apenas escutaram cabisbaixas.
Um outro dia elas vieram aos poucos, foram se acomodando pela sala, a tia mais velha sentou-se perto dela e iniciou uma conversa que foi se prolongando, de repente todas estavam misturando estórias e chorando.
Sua tia contou-lhe que sofrera maltrato do querido tio Danya, desde a noite de núpcias. Havia casado muito jovem, e antes das bodas nunca tinha convivido com noivo mais do que três dias seguidos pois moravam em vilas diferentes. Na noite de núpcias ele embriagou-se para aplacar o medo. Ao vê-lo neste estado ela ficou apavorada e começou a soluçar, e ele irritou-se e subjugando-a com brutalidade machucou-a de tal maneira que precisou chamar a parteira para dar alguns pontos.
As conversas continuaram, as mulheres se revezavam nas narrativas, estavam todas naquela sala e todas iriam para suas casas esperar por seus homens com o jantar pronto, casa arrumada, e dormiriam na mesma cama que servia de ringue.
Iryna compreendeu que a brutalidade era parte da sua raça e a herança estaria com ela em todo lugar, pouco adiantava permanecer numa cidade que não era sua, com pessoas com quem não vivera seus últimos vinte anos. E decidiu retornar.

Chegar em casa não foi agradável. Defrontava-se com sentimentos novos, medo de andar pelas ruas, chegou a imaginar que estava sendo seguida. Não sabia o que pensar, sentia-se só e sem vontade de procurar suas amigas e colegas da escola. Tinha vergonha pelo sucedido.
Um dia voltou ao trabalho. Roberto, seu colega sempre atencioso, convidou-a para almoçar. Durante a refeição, Iryna contou-lhe sobre as estórias de sua família ucraniana, sua tristeza, seu medo de se repetir, ser igual ao padrão familiar sem chances de viver bem com um homem.
Roberto pensou em algo para ajudá-la e dias depois voltou com a solução. Foi assim que ela se viu num consultório de psiquiatra.

De repente eles estavam se encontrando mais, gostavam das mesmas músicas e tinham o mesmo tipo de família tradicional. Ele tinha alguma coisa muito atraente que Iryna não conseguia identificar, não era a sua bondade e nem seu jeito carinhoso com todo o mundo. Gostava de ficar com ele mesmo sem fazer nada. Mas percebeu nele um lado familiar muito chato, parecido com sua família ucraniana: obsessão em ligar para a mãe, cuidado exagerado com as roupas, que por sinal um estilo meio fora de moda.
Uma noite ele telefonou dizendo estar por perto, ela havia saído do banho, cabelos molhados quando ele tocou a campainha. Abriu a porta e ele estava alegre, com uma garrafa de vinho e flores de algum jardim de condomínio. Sentiu intimidade maior da parte dele, por algum motivo isso a desagradou, mas estava se achando dona da situação, nada faria que não estivesse querendo. Pediu para secar o cabelo, ele fechou o sorriso, pegou-a pelo braço e puxou-a para o sofá. Quando ele agarrou sua nuca a toalha desprendeu-se e ele passou suas mãos pelos cabelos molhados. Iryna sentiu uma atração incrível, incomparável, estava possuída e daí para frente nada mais interessava.
Ela era isso.